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Amílcar Pinto (1890-1978) foi um interessante e pouco conhecido autor de arquitectura portuguesa, activo ao longo de Novecentos. Referenciado por José-Augusto França na sua Arte em Portugal no século xx (1974), a sua obra maior será sempre o Teatro Rosa Damasceno, em Santarém, de 1938: peça modernista de primeiro nível, que, com os seus mais de mil lugares, permanece como a melhor sala para espaço cénico, da sua época, construída em Portugal.

Infelizmente em ruínas depois de um incêndio “oportuno” há poucos anos (o edifício é actualmente propriedade de uma empresa imobiliária), o Rosa Damasceno seria (esperemos que venha a ser) a grande obra de reedificação, reconstrução e recuperação urbana, dentro do Património Cultural edificado escalabitano – exigindo-se para tal uma informada e culta iniciativa municipal, com eventual apoio do Estado e/ou patrocinadores privados.  

Na sessão de homenagem a Amílcar Pinto, que a Câmara Municipal de Santarém promoveu em 28 de Maio de 2010 (Amílcar Pinto um arquitecto na província), por iniciativa dos investigadores arquitecto Tiago Soares Lopes e doutor José Raimundo Noras, que contou com o apoio e a presença da família de Amílcar Pinto (cujo bisneto é também arquitecto), ficou patente a estima que a cidade tem por este autor, e os esforços, ainda não visíveis, para reerguer o Rosa Damasceno.
Na sessão testemunhou um anterior e famoso presidente da edilidade local, que explicou ter conseguido há anos (antes do incêndio) uma estratégia para a salvaguarda do edifício, que foi tristemente abandonada posteriormente pelas vereações seguintes.

Fazer renascer o Rosa Damasceno das cinzas, seria uma acção de verdadeira homenagem, útil e com sentido de futuro – uma homenagem à cidade e ao arquitecto –, que se poderia de facto realizar. Não o fez Lisboa para o Capitólio de Cristino da Silva?

 

Um percurso

Amílcar Pinto foi autor de uma obra relativamente extensa e diversificada, ao longo das décadas de 1920 a 1960 (sensivelmente entre 1927 – ano do Grande Hotel das Termas de São Pedro do Sul/actual INATEL – e 1967, com os prédios de rendimento erigidos na via para as Portas do Sol em Santarém) – e espalhada um pouco pelo País, desde Lisboa a Santarém, da Covilhã a Gouveia, ou de Ponte de Lima a Alcácer do Sal.

Como muitos autores da sua geração, Amílcar Pinto dividiu--se, nestas décadas, entre o gosto pelo desenho modernista de base internacionalista, com uso de uma estética art deco e uma expressão purista e geometrista, e a apetência por programas de cariz neotradicional, mais ligados aos temas formais regionais e historicistas. Por um lado, pode considerar-se que terá “evoluído” de uma fase inicial, nos anos de 1920, de tipo “Casa Portuguesa”, para a “epopeia” modernista da década de 1930 – para depois “regressar” aos temas neotradicionais nos anos de 1940-50. Mas esta leitura, sem deixar de ter alguma pertinência como expressão de um percurso e de um tempo colectivo, não é totalmente exacta: a verdade é que os autores desta época se dividiram, sempre, com certa “naturalidade conceptual”, entre o desenho modernizante e o tradicionalista – mais em função de programas, de locais, de públicos e de clientes, do que de décadas ou de fases. Em todo o caso, se houve algum “apogeu” das práticas de projecto modernistas, ele ocorreu de facto com um “pico” indiscutível (o efeito “Duarte Pacheco”?) nos anos de 1930.

Assim, e no plano modernista, Amílcar Pinto projectou vários equipamentos, quer individualmente – em Santarém, na área do núcleo antigo, além do Teatro, refira-se o Café Central, de 1937 (em vias de recuperação pela edilidade) e o Hotel Abidis, de 1944 –, quer em colaboração com autores de vulto.

Nesta vertente, deve mencionar-se a sua participação em obras para os Correios e as Telecomunicações, em colaboração com Adelino Nunes (1903-1948): o edifício de Santarém, de 1938 (Correios, Telégrafos e Telefones), que, com espírito modernista, se “resolve” num gaveto (e o resolve), de articulação entre o casco histórico da urbe e a praça-rossio da área de expansão urbana (hoje algo desfigurado, pela alteração/ocultação da escadaria dupla da frontaria); o de Ponte de Lima, num modernismo sóbrio e modesto, de 1936; e o de Seia, de 1943 (mas este “já” em gosto regionalista). 

Amílcar Pinto também projectou, para a Emissora Nacional, com Adelino Nunes e Jorge Segurado (1898-1990), o edifício dos Estúdios (na rua do Quelhas em Lisboa, actualmente recuperado por Gonçalo Byrne para o ISEG) e do Posto Emissor (em Barcarena), em 1933-1935 – ambos em elegante, embora austero, desenho modernista. 

Como “canto de cisne” da produção modernista, pode referir-se o Cine-Teatro de Almeirim/Café Império, de 1940, onde o eixo vertical marcado por uma grelha decorativa como que prenuncia a sua futura reaproximação aos temas tradicionais (actualmente recuperado pela autarquia). O Teatro de Gouveia (1941) será talvez uma obra de articulação e equilíbrio entre estéticas – com uma sala de espectáculos de certa leveza e dinamismo formal.

Já nas suas obras de cariz mais tradicional, podemos seguir as análises e a investigação de José Raimundo Noras e Tiago Soares Lopes, no seu texto “Amílcar Pinto, um arquitecto na província”: nos primeiros anos de trabalho, mencione-se a moradia na Quinta de Corjes, nos arredores da Covilhã, de 1925, e a moradia de Ambrósio Catalão, de 1928, no tecido central da mesma cidade (actualmente algo descaracterizada) – ambas com a marcação tipificadora da cobertura telhada, e do frontão curvo-quebrado, barroquizante-joanino, definindo o eixo da fachada. Também na mesma linha, cite-se o Mercado Municipal de Ponte de Lima (1929-1931), para além do já mencionado Grande Hotel de São Pedro do Sul (1927), este num desenho mais mundano e de abundante decorativismo.

As obras das décadas de 1950-60, menos interessantes e inventivas, reflectem o já indicado regresso a formulários decorativistas e regionalistas. Veja-se, em Santarém: a casa do Engenheiro Mendes, de 1950, num pesado gosto de “Português Suave”, com arcaria térrea, rematada pela densa cornija com beiral; a Casa do Campino, de 1966, com a arcaria central e a varanda encimada pelo frontão telhado; e a casa-prédio, na Avenida 5 de Outubro, de 1967, dentro de uma estética de algum modo mais “neutra” e convencional. 

Amílcar Pinto ficar-nos-á sobretudo pela força e qualidade da sua actuação na renovação e modernização do tecido medievo da tradicional Santarém, ao longo de um “eixo modernista” com que soube “atravessar” a urbe e imprimir-lhe a inovadora marca do século XX. Reafirme-se, pois, neste quadro, o pujante Rosa Damasceno.|

 

 

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1 José Raimundo Noras; Tiago Soares Lopes. Amílcar Pinto, um arquitecto na província. Monumentos. Lisboa, IHRU. Nº 29 (Jul. de 2009), p. 172-179. 


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